sábado, 24 de março de 2012

A jarra partida

 
Partiu-se a jarrinha, aquela jarrinha de flores pintadas à mão, tão elegante, tão graciosa que era o enlevo de todas as pessoas que passavam por nossa casa.
— Está na nossa família há séculos. Dizem que foi oferecida por uma rainha de antigamente a uma antepassada nossa — explicava a minha mãe, enternecida, a olhar para a jarrinha de flores pintadas.
Pois, mas partiu-se. Partiu-se em cacos inumeráveis que não há conserto nem cola que lhe valham. Quem foi o desastrado?
— Eu não — safou-se o Tiago. — Quando eu cheguei a casa, já a mãe estava a chorar.
O meu irmão Tiago ficou livre de qualquer suspeita.
— Eu também não fui — apressou-se a dizer o meu pai. — Quando eu cheguei a casa, já a vossa mãe estava a ser consolada pelo Tiago.
— Eu é que não fui — choramingou a minha mãe. — Tinha tanta estimação na jarrinha. Quando eu cheguei a casa, não havia cá ninguém e já a jarra estava partida em mil bocados. Por pouco que não desmaiava de desgosto.
— Só se foi o Bolinhas... — lembrou o Tiago.
O nosso gato Bolinhas desenrolou-se com muita dignidade e disse:
— Eu não fui nem tenho nada a ver com o assunto.
E voltou a enrolar-se e a adormecer. Ai, quem me dera ter podido fazer o mesmo!
— Fui eu — balbuciei.
Todos se viraram para mim.
— Tu, Marcos? E estavas calado?
Suspirei fundo e comecei a contar o que acontecera. À medida que contava, ia ficando mais tranquilo, sem aquela insuportável queimadura nem sei onde – no estômago? No coração? na barriga? – que me fizera correr de casa para a escada, da escada para a rua, como se tivesse lançado fogo ao prédio. Ou a mim próprio.
Tinha sido um azar. É sempre um azar. Para meter a ficha do gravador de vídeo na tomada da parede, tive de arredar um bocadinho a estante. Não contava que fosse tão pesada. Com a inclinação da estante, os livros escorregaram. Precipitei-me sobre eles, para evitar o desmoronamento. Não medindo os gestos, dei um encontrão numa mesinha que abalou o expositor onde estava a jarrinha. Estremeceram as bonecas de Saxe e saltaram as chávenas de café nos respetivos pires... A jarrinha, como a casca de um ovo, partiu-se. Acho que ela estava, há muito tempo, à espera de partir-se. Qualquer estremecimento lhe daria o pretexto. Dei eu. A culpa foi minha.
Disse isto com um ar tão enfiado, tão de lamentar, que o círculo acusador à minha volta se desanuviou e desfez por si. A minha mãe, suspirando, foi varrer os vidros da jarra para uma caixa, na ilusão de que talvez ainda pudesse ser restaurada, o Tiago lançou-me uma piscadela de olhos de “fixe, meu”, e o meu pai, antes de mergulhar no jornal, confidenciou-me:
— Sabes: a jarra realmente já estava partida. Há tempos, na balbúrdia de uma brincadeira com o Bolinhas, que ainda era gatinho, a jarra rachou-‑se. Isto é, rachei-a... Como estava sozinho em casa, tive tempo de consertá-‑la o melhor que pude, para não dar um desgosto à tua mãe. Mas, de facto, a jarra já estava partida.
Por aquela não esperava eu.
— Tu tiveste muita coragem em confessar — continuou o meu pai. — De aqui a bocado, ao jantar, quando estivermos todos juntos, vou ser eu a precisar de coragem. E desculpa...
O meu pai abriu à sua frente as longas páginas do jornal, não sei se para lê-las, se para esconder a cara do embaraço. Também é preciso coragem para pedir desculpa.
António Torrado




O que esta historia  tem a ver com a Psicologia? tudo.... quando falamos aquilo que   supostamente  é vergonhoso e causa constrangimento, vem o alivio, físico e emocional.

Honrar a palavra


No negócio de mobílias usadas, não se pode comprar por catálogo, como se faz com as novas. As pessoas aparecem e o comerciante tem de ir às casas vê-las e fazer o seu preço. “Não se pode vender o que não se tem,” costumava dizer o meu pai. Por isso, estas visitas eram de extrema importância para ele.
Quando eu tinha 13 anos, o meu pai ficou sem o gerente da loja, um homem que, com o seu único braço, trabalhava muito mais do que muitas pessoas com os dois. Conseguia, por exemplo, suspender uma cadeira da ponta de uma vara, içá-la no ar e fazê-la deslizar até uns ganchos presos ao teto, bem à vista de todos quantos entravam na loja. Na falta do gerente, o meu pai veio pedir-me ajuda, pedindo-me que ficasse à frente do balcão enquanto ele procedia às visitas do dia, até se encontrar a pessoa certa. A loja tinha dezenas de milhar de objetos. “As pessoas gostam de regatear,” disse-me, “por isso não há preços marcados. Apenas tens de ter alguns pontos de referência.”
Levou-me a dar uma volta pela loja. “Podes vender um pequeno motor por quatro dólares. Por um frigorífico, dependendo do estado em que se encontrar, podes pedir entre trinta e cinco e sessenta dólares. Se tiver congelador, poderás ir até aos oitenta, vá lá, até aos cem dólares, caso esteja em ótimo estado. Se uma junta estiver solta, é para o lixo. Não ligues a riscos ou rachadelas. Os pratos vêm com a mobília e nem sequer os levo em consideração quando lhes atribuo o preço. Poderás vendê-los por um preço simpático, algures entre os cinco e os vinte e cinco cêntimos.”
Todos os dias depois da escola, voava na minha bicicleta até à loja. Um dia, estava eu a escrever o preço de um prato muito bonito numa tirinha de papel quando o meu pai entrou. Tinha pedido um dólar e o comprador não hesitou. Fiquei todo contente. O meu pai viu o que eu estava a fazer, virou-se para o cliente e disse, “Que bela pechincha leva aí! O meu empregado fez-‑lhe o preço e é esse o preço certo.” Mais tarde, perguntei ao meu pai, “Porque é que o pai disse aquilo?”
Tratava-se, pelos vistos, de um prato antigo que valia umas boas centenas de dólares. Fiquei descoroçoado. Tanto que me esforçava por dar o meu melhor. Pelos vistos, em vez de ajudar o meu pai, estava a fazê-lo perder dinheiro.
“Se quisesse, podia ter impedido o negócio,” disse ele. “Estavas a escrever o preço e ainda não tinhas pegado no dinheiro. Além disso, és menor de idade. Só que um judeu honra a sua palavra e a dos seus colaboradores.”
Este incidente haveria de ter uma consequência. Anos mais tarde, a minha mulher e eu tivemos de mandar uma grande quantia de dinheiro para a nossa filha em Israel. Um funcionário do banco aconselhou a minha mulher a enviar o dinheiro através de cheque visado, uma vez que, dessa forma, estaríamos isentos do pagamento de comissões. Quando recebi o extrato bancário, porém, reparei que nos tinha sido debitada uma série de taxas. Decidi, então, ir falar com a gerente do banco e explicar-lhe que um funcionário seu é que nos tinha aconselhado sobre a melhor forma de evitar despesas com o envio do dinheiro. Ouviu-me em silêncio e, no final, disse apenas, “Lamentamos o sucedido, mas acontece que o colega deu uma informação errada.”
Foi então que lhe contei a história do meu pai e de como ele fazia sua a palavra dos seus empregados, honrando-a. Terminei, dizendo, “Isto aconteceu sem que o cliente tivesse sido lesado e tendo o meu pai descoberto o erro antes de a transação ter sido efetuada. Imagine só como ele teria agido se tivesse havido danos! Espero que o meu banco atue no mínimo com a mesma integridade do meu pai.”
Durante todo o tempo em que falei, a gerente não proferiu palavra e assim continuou, enquanto eu aguardava a sua reação. Quando falou, a voz era suave. “O Banco de Comércio Imperial do Canadá não ficará aquém do seu pai,” disse, com toda a dignidade. Prometeu, então, a anulação de todas as taxas indevidamente cobradas.
Enquanto lhe agradecia e me preparava para ir embora, senti-me grato por uma história de integridade ainda ter o poder, nos tempos que correm, de tocar os corações e acordar consciências no mundo impessoal dos negócios.
 
Rabbi Roy D. Tanenbaum
 
 
Jack Canfield, Mark Victor Hansen, Rabbi Dov Peretz Elkins
Chicken Soup for the Jewish Soul
HCIbooks, Deerfield Beach, 1999
(Tradução e adaptação)